quinta-feira, maio 21, 2009

Desejo: Ironia

Aquilo que temos, ou o que podemos ter sem esforço, não tem valor. Quando nos dão uma prenda dificilmente ficamos contentes com a prenda em si. O que nos desperta a alegria momentânea é uma pequena reacção psicológica semelhante à destravada ao finalizar uma refeição. Por muito boa que tenha sido, já não há nada mais a ter.

Nada disto é novidade sob forma alguma, talvez a verbalização daquilo que todos nós já conhecemos. No entanto, é quase espiritual quando aplicado às relações humanas.

A singularidade revela-se ao entender que é justamente o oposto da lei natural de conservação de energia. E, creio, que é o que nos distingue de todos os outros exemplos da natureza. Invariavelmente desejamos aquilo que nos é escasso. Não são as construções intelectuais ou mnemónicas mentais que nos permitem identificar determinados segmentos repetitivos que nos exacerbam no reino animal. É, sim, a reacção química provocada pelo desejo.

À primeira vista parece um traço incompreensível. Se nos saciamos com aquilo que temos qual é a lógica de querer mais? A evolução tomou este destino aberrante que nos conduz à ambição ilimitada e que nos torna, por um lado, superiores a todos os entes vivos deste planeta, por outro escraviza-nos de uma vontade que nunca será satisfeita. Ou será?

Nós não somos máquinas de movimento perpétuo, e há sempre algo que abranda esta busca aparentemente infinita. Há um processo cíclico semelhante a todos os outros eventos naturais, e o do desejo é particularmente volátil. Com a mesma obsessão que durante um momento consumimos todas as nossas forças em direcção ao objecto do nosso desejo, logo no instante seguinte somos satisfeitos e participamos de um período morno. Esse período subconsciente traduz-se na nossa aceitação de que esse nosso desejo era pequeno, insignificante, provavelmente ridículo. Mas como qualquer ciclo, retomamos o processo e passamos a desejar algo de diferente - em quantidade e/ou em qualidade.

A quantidade de palavras escritas sobre "desejo" (aquilo que em 99% - estatística claramente oficial - dos casos é chamado de "amor") é de proporções bíblicas, sem esforço identificamos o padrão constante que revolve em torno da catástrofe desta dinâmica singular.

O nosso desejo é proporcional à função da nossa percepção de raridade pela de utilidade:
desejo=(raridade * utilidade)

Descobrimos x. Se desejamos x, quando conseguimos x perdemos o interesse e, passado algum tempo, voltamo-nos para y. Se x nos deseja à partida nem sequer nos chegamos a interessar por x, passamos automaticamente para y.

A fórmula é relativamente simples, e aceitando-a tomamos parte do entendimento no processo de relações entre o ser humano. Mas não é isto que ressuscita constantemente a temática do "desejo", não é isto que trepida as mentes literárias romanescas na sua propagação trágica.

De outra forma, ao assumir o axioma, todos os problemas amorosos estariam resolvidos. Basta-me revelar-me a x, partindo do pressuposto que todas as pessoas têm um mínimo de interesse, e mostrar-me escasso a x que x passa a interessar-se por mim. Assunto resolvido.

A causa de todo o sofrimento é que o "desejo" é estridente. Não nós conseguimos esconder quando queremos muito uma coisa. Todos nós conseguimos identificar imediatamente quando um amigo nosso quer muito uma coisa (ou uma pessoa), cada pequeno gesto desse ente revela a mais profunda escravidão a uma vontade de origem inexplicável. Entenda-se que a forma como o desejo surge é de natureza demasiado complexa para uma explicação sucinta. Por outro lado, a forma como o processo toma lugar é, como podemos compreender acima, relativamente simples.

Pois que nem em todas as situações isto aparenta ser. Mas a quantidade óbvia do desejo é proporcional à quantidade interior do mesmo. Quando se quer muito uma coisa, é impossível esconder. Quando se quer um bocadinho apenas não é tão difícil fazermos o nosso papel despercebidamente e encontrarmo-nos com os nossos interesses.

Naturalmente, quanto mais pequeno é o desejo mais curto é o período morno de satisfação e mais rapidamente passamos ao próximo objecto.

O aparente paradoxo prostra-se ante o nosso entendimento quando notamos que quanto maior é o nosso desejo, mais óbvio é, mais provável é que o objecto do nosso desejo não nos deseje de volta. Assim, a quantidade de desejo é inversamente proporcional à nossa probablidade de satisfação.

O que à primeira vista aparenta ser uma tragédia incontornável que, além da tinta e papel gastos, também vários oceanos de lágrimas escorreu é, na verdade, a característica mais importante da nossa existência. O desejo é o combustível para a nossa vida que ora nos permite a serenidade pós-orgásmica, ora nos esmaga na impossibilidade da sua realização.